21 de dezembro de 2023
Por Rogério Mota*
Até o início do século 20, era comum que trabalhadores nas minas de carvão levassem canários consigo, para a detecção de gases tóxicos. Os canários morriam ainda quando a concentração de dióxido de carbono não se havia tornado suficientemente fatal para os humanos, indicando previamente o risco à vida dos mineiros que ali trabalhavam e a necessidade de evacuação imediata. Com a evolução da tecnologia dos equipamentos de detecção, felizmente, a prática cruel deixou de ser utilizada. O canário, porém, tornou-se metáfora de indicadores iniciais de riscos.
Assim como o canário na mina, a atenção ao Relatório do Auditor Independente pode sinalizar de antemão ao investidor algumas questões relacionadas a problemas na continuidade operacional da empresa. Afinal, os preparadores das demonstrações contábeis devem elaborá-las com base no pressuposto da continuidade operacional da entidade, por, no mínimo, um exercício social, apresentando as premissas que embasem essa continuidade. Quando houver incerteza relevante sobre a capacidade da entidade continuar operando e honrando com os seus compromissos financeiros em um futuro previsível, a administração tem o dever de dar a transparência sobre o tema aos seus investidores e partes interessadas, bem como a apresentar um plano de continuidade dos negócios.
Ao auditor cabe obter evidências de que o pressuposto de continuidade operacional é apropriado, conforme a prática contábil adotada pela entidade , bem como de que nas notas explicativas contém as divulgações apropriadas., Quando existe incerteza relevante em relação a eventos que possam prejudicar a continuidade das atividades da empresa, o auditor deve fazer constar no relatório uma seção específica sobre a continuidade operacional, de acordo com a norma de auditoria vigente (NBC TA 570). Ao fazê-lo, o auditor geralmente faz referência a eventos ou condições, divulgados nas notas explicativas, que indicam a existência de incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à continuidade operacional da entidade. E quando a auditoria julgar que a administração não fez uma divulgação adequada com relação à continuidade operacional considerando a prática contábil adotada pela entidade, o auditor emite uma opinião com ressalvas ou uma opinião adversa.
Ou seja, a auditoria é extremamente útil ao usuário da informação contábil para sinalizar ao investidor incertezas relevantes de continuidade operacional da empresa auditada. Um levantamento realizado pelo Ibracon – Instituto de Auditoria Independente do Brasil, identificou que 93% dos relatórios de auditoria de empresas que vieram a, posteriormente, requerer recuperação judicial (RJ), continham alertas sobre a continuidade operacional dessas entidades, seja em seção específica sobre o assunto, seja nos Principais Assuntos de Auditoria, incluíram negativas de opinião, ou alertas às situações que culminaram com o pedido ajuizado pela empresa. Os 7% dos casos, em que não houve um alerta no relatório imediatamente anterior ao pedido de recuperação judicial, envolveram situações específicas relacionadas a eventos subsequentes à data de publicação das demonstrações contábeis.
Esse estudo, detalhado na série de artigos Mind the Gap do Ibracon, e demonstra a importância da auditoria independentes para a boa governança corporativa e para a diminuição da assimetria informacional existente entre as companhias e o restante do mercado.
Embora o relatório do auditor independente possa fornecer informações sobre incertezas em relação a continuidade operacional de uma entidade, isso não significa que a ausência de alertas no relatório de auditoria possa ser interpretada como uma garantia de que a entidade continuará operando. Com efeito, o objetivo de uma auditoria é obter segurança razoável (não absoluta) de que a demonstração contábil foi elaborada em conformidade com as práticas contábeis que esteja sendo adotada, não garantir a viabilidade econômica e financeira de uma entidade.
As dificuldades dos tempos atuais sobrelevam a importância de informações robustas nas notas explicativas das demonstrações contábeis, para que seus usuários tenham informações mais precisas sobre o contexto financeiro e operacional das companhias, os planos de ação da administração para lidar com situações adversas e sobre as premissas adotadas em eventuais julgamentos críticos.
Trata-se de tema recorrente em âmbito internacional e que se tem tornado cada vez mais complexo em função do aumento da complexidade dos negócios. Nesse sentido, o conselho emissor das Normas Internacionais de Auditoria (IAASB) colocou em audiência pública proposta para melhorias nos processos de auditoria e nas divulgações de riscos à continuidade operacional das entidades, cuja transparência e consistência depende em grande parte das normas de preparação das demonstrações contábeis que estiverem sendo adotadas por uma entidade.
Apesar das incertezas e de ambientes cada vez mais desafiadores, a Auditoria Independente está em constante evolução, e busca sempre um diálogo com a sociedade na alteração de procedimentos para melhor atender ao interesse público.
Assim como o canário na mina de carvão, a auditoria tem um papel fundamental como sinalizador e informante do mercado aos sinais de incertezas relevantes.
*Rogério Mota é diretor Técnico do Ibracon – Instituto de Auditoria Independente do Brasil
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